O trabalho da lactante em ambiente insalubre: retrocesso social

 

No dia 9 de outubro de 2018 tomei conhecimento de um texto da Folha de São Paulo1, do famoso historiador Yuval Noah Harari, autor do best-seller “Sapiens: Uma Breve História da Humanidade”, no qual se relata a mudança no mundo do trabalho decorrente da revolução da automação, sobretudo por causa da inteligência artificial, que trará como consequência a extinção de muitos empregos e a necessidade de proteção dos seres humanos.

Imediatamente fiz reflexões sobre discussões variadas realizadas enquanto estudante de doutorado em Direito junto à Universidade de Brasília, onde os mais diversos e brilhantes professores daquele curso se esmeram para levar aos alunos conhecimento sobre os impactos da tecnologia nos múltiplos campos do Direito, a exemplo do direito internacional, direito constitucional, direito e internet, em linha com as faculdades mais renomadas do mundo.

As elucubrações foram interrompidas quando abri o popular aplicativo de mensagens whatsapp e fui tomado por uma pauta muito mais transversal no cenário social brasileiro: reforma trabalhista, eleições, misoginia.

Recordei-me imediatamente da inconstitucionalidade e inconvencionalidade do permissivo legal do trabalho da lactante em ambiente insalubre. Peço uma certa paciência ao leitor para explicar – mais uma vez – aparentemente o óbvio, isto é, o retrocesso social carregado em um dispositivo desse jaez, introduzido no Brasil em pleno 2017, para, ao final, encerrar a minha reflexão e o paralelo sobre as mudanças decorrentes da automação.

O artigo 394-A da CLT foi alterado pela Lei 13.467/2017 e como novidade trouxe a possibilidade de trabalho da lactante em ambiente insalubre em grau máximo, desde que seja fornecido atestado de saúde de médico de confiança da lactante.

Veja-se:

Art. 394-A.  Sem prejuízo de sua remuneração, nesta incluído o valor do adicional de insalubridade, a empregada deverá ser afastada de:    

I – atividades consideradas insalubres em grau máximo, enquanto durar a gestação;      

II – atividades consideradas insalubres em grau médio ou mínimo, quando apresentar atestado de saúde, emitido por médico de confiança da mulher, que recomende o afastamento durante a gestação;   

III – atividades consideradas insalubres em qualquer grau, quando apresentar atestado de saúde, emitido por médico de confiança da mulher, que recomende o afastamento durante a lactação.    

Entre as modificações realizadas, chamo a atenção para a possibilidade do inciso III: as lactantes trabalharem em ambiente insalubre em qualquer grau, salvo se houver recomendação médica para o afastamento.

A própria disposição normativa traz uma discriminação entre a gestante e a lactante, pois, consoante inciso I, no caso de atividade insalubre em grau máximo, a gestante deverá ser afastada do trabalho, ao passo que, conforme inciso III acima transcrito, a lactante não goza de semelhante tratamento.

Ainda sobre referido artigo, com maestria o professor Pablo Baldivieso assim se posiciona2:

Ficam claras duas incongruências no dispositivo. A primeira no sentido de permitir um trabalho insalubre em grau máximo para a lactante e outro em não conferir segurança ao denominado atestado médico por profissional confiança da gestante.
Ademais, compreendemos que o reconhecimento constitucional dos direitos fundamentais em um Estado Democrático de Direito lhes confere uma natureza de trunfos contra a maioria, ou seja, gozam de uma situação da primazia face aos poderes constituídos.

A Constituição de 1988 traz um tratamento diferenciado à mulher enquanto mãe. A maternidade possui aparato legislativo especial pela Carta de 1988, autorizando condutas e vantagens superiores ao padrão deferido ao homem – e mesmo à mulher que não esteja vivenciando a situação de gestação e recente parto3.

Neste sentido, diversos dispositivos, como o art. 7. XVIII (licença à gestante de 120 dias), art. 226 (preceito valorizador da família) e as inúmeras normas que buscam assegurar um padrão moral e educacional minimamente razoável à criança e adolescente (contidos no art. 227, CRFF/88)4.

Referida diferenciação é revestida, portanto, por todo o interesse público primário na proteção à maternidade, independentemente de gênero.

Destarte, flagrante a inconstitucionalidade da regra do artigo 394-A, inciso III, da Lei nº 13.467/2017, por violação aos artigos 1º, inciso III; 6º; 7º, inciso XXII; 201, inciso II; 203, inciso I e 227, todos da Constituição da República, os quais consagram a dignidade humana, a proteção integral à criança e o direito social à saúde.

Anteriormente à reforma trabalhista não se permitia o trabalho da lactante em ambiente insalubre; ou seja, constata-se, de antemão, o retrocesso, pois o trabalho em ambiente insalubre, especialmente no grau máximo, pode trazer sérios prejuízos à mulher e ao recém-nascido.

O professor Pablo Baldivieso5 nos brinda com informações da Organização Mundial de Saúde – OMS, segundo as quais 12,6 milhões de pessoas morrem todos os anos devido a condições ambientais insalubres.

Independentemente de dados estatísticos, o próprio senso comum demonstraria não ser a melhor escolha o trabalho da lactante em ambiente insalubre em grau máximo; referido dispositivo, inclusive, vai na contramão do alargamento da licença-maternidade introduzido recentemente em nosso ordenamento jurídico.

A permissão legal do trabalho da lactante em ambiente insalubre, em grau máximo, então ainda mais perplexidade quando altera completamente o sentido da legislação até então vigente. Em outras palavras: antes era proibido, agora é permitido. Onde está a segurança jurídica? Qual a justificativa para tamanho retrocesso?

Não há. Pelo contrário, o retrocesso no nível de exercício de um direito fundamental protegido é uma nítida medida regressiva, em afronta ao disposto no artigo 7º, caput, da Constituição da República, onde se buscam outros e novos direitos para melhorar a condição dos trabalhadores urbanos e rurais.

Deveria ocorrer o afastamento da empregada gestante ou lactante sempre que o trabalho fosse realizado em atividade insalubre, independentemente de atestado médico.

Muitos outros parágrafos poderiam aqui ser escritos para justificar a nocividade para toda a sociedade da permissão do trabalho da lactante em ambiente insalubre, particularmente em grau máximo.

E mais uma vez, no mundo do trabalho, nós, profissionais e estudantes do Direito brasileiro, precisamos defender o básico, o óbvio, o núcleo mais essencial e intangível de Direitos como se fosse coisa de outro mundo.

Enquanto diuturnamente há a necessidade imperativa de defesa por direitos fundamentais de toda a sorte no cenário jurídico-social-nacional, no plano internacional, outras discussões, a exemplo das transformações decorrentes da tecnologia, são transversais e ocupam o cotidiano.

Precisamos evoluir.

É necessária a compreensão de que certos Direitos, a exemplo da vedação do trabalho da lactante em ambiente insalubre, possuem uma grande carga axiológica e não comportariam retrocessos.

A partir daí, fixadas as balizas fundamentais e amadurecido nosso Direito, precisamos avançar nos debates, como naquele trazido no início deste texto, de extinção dos trabalhos pela automação e inteligência artificial, sob pena de não nos desenvolvermos socialmente e enfrentarmos um difícil cenário de alijamento.

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