Ninguém é de ferro

Metalúrgicos e metalúrgicas, acostumados a trabalhar com a força física para sobreviver, relatam doenças psicológicas agravadas por pressões, assédios e humilhações dentro das fábricas

 

Não é normal ouvir insultos, palavrões e xingamentos no ambiente de trabalho! Abrimos esse texto dizendo o óbvio porque, atualmente, diversos trabalhadores e trabalhadoras têm reportado casos parecidos dentro das empresas em que trabalham: são situações de assédio moral e humilhações (provocadas por lideranças e colegas) em fábricas que compõem a base do Sindicato dos Metalúrgicos de Sorocaba e Região (SMetal). 

 

O Sindicato tem a postura de sempre ajudar e orientar os trabalhadores em casos como esses, auxiliando com todo suporte jurídico e, quando necessário, até mesmo paralisando as produções para protestar contra os abusos de poder. Para além do respaldo legal, é missão do SMetal recordar, ainda, que esses tratamentos podem facilmente adoecer psicologicamente uma pessoa. 

De acordo com a psicóloga e gestora de Recursos Humanos, Kátia Leite, humilhações e abusos podem ser gatilhos para doenças. “A princípio, os efeitos do assédio moral no trabalhador podem gerar estresse e ansiedade e sentimento de rejeição ao ambiente de trabalho, ou seja, quando a pessoa não quer ir trabalhar porque ela sabe que vai sofrer um assédio”, conta. 

“Em casos mais extremos é possível desenvolver até mesmo o estresse pós-traumático, porque o trabalhador sofre tanto com o assédio que aquela situação traumatiza”, explica Kátia. A psicóloga pondera que quadros de depressão também são comuns como resultado de situações em que os trabalhadores vivem o assédio moral.

Segundo dados da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho, mais de 570 mil trabalhadores solicitaram a concessão de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez decorrente de transtornos mentais e comportamentais no ano de 2020. Este número, além de representar uma alta de 26% se comparado a 2019, expõe um cenário cruel que é enfrentado diariamente por funcionários e pode, muitas vezes, ser agravado pelo ambiente de trabalho. Somente por ansiedade e depressão foram 285 mil afastamentos registrados pela Secretaria em 2020.

Essa condição representa, parcialmente, a situação de G*, que trabalha em uma empresa metalúrgica em Sorocaba. Há algum tempo, a trabalhadora começou a se sentir pressionada por um funcionário da fábrica. “Ele me forçou a trabalhar contra a minha capacidade”, conta G*, que possui uma deficiência física.

Ela comenta que ficou nervosa com a situação e, quando precisa trabalhar, enfrenta dificuldade em se concentrar. “Eu estava com medo da pessoa. O tom de voz, o jeito de falar comigo. Dizia que eu estava inventando desculpas para não conseguir. Não havia um dia em que eu conseguisse trabalhar em paz”, recorda. Essa situação não chegou a resultar em afastamento, mas causou um quadro de ansiedade na trabalhadora que hoje não atua diretamente com este funcionário, mas teme pelos outros colegas de trabalho e faz um apelo: “Isso me traumatizou. Essa pessoa pode fazer outra vítima”. 

Por vezes, quando essas situações chegam ao conhecimento de pessoas do setor de Recursos Humanos, nada é feito. Diversos trabalhadores relatam ao Sindicato certa “proteção” por parte de alguns RHs às pessoas que cometem abusos e assédios. O SMetal lembra que, além de desumanos, esses casos tem penalização legal. Quando comprovado que houve um tratamento diferenciado em relação aquele trabalhador, ou que as condições de trabalho eram agressivas psicologicamente e que afetam a “psique” (mente) da pessoa, ela passa a ter direito à indenização por danos morais e materiais. 

B* relata o clima de tensão que ele e todos os colegas de trabalho viviam. “O líder chegou a me chamar de burro e bandido na frente de diretores da empresa sem que eu tivesse feito nada. Apenas por perseguição e assédio”, conta. “Com algumas mulheres, ele chegou a fazer gestos (obscenos) e usar palavrões para humilhar e rebaixar”. 

Esta foi uma das situações que, apesar de reportadas para o RH da empresa, teve a “sujeira varrida para debaixo do tapete”. B* afirma que houve proteção a essa pessoa (que está em cargo de liderança) e os assédios morais, realizados por ela, continuaram acontecendo. No seu caso, as humilhações afetaram na convivência familiar e desencadearam sentimentos de revolta e tristeza, que, segundo ele, “tiravam o sono”. Foi necessária uma ação sindical do SMetal na empresa para que os casos cessassem. 

Depressão

Uma humilhação pública dentro da própria empresa foi um dos motivos que fez M*, de 42 anos, ver seu quadro de depressão se agravar. Enquanto executava um procedimento padrão, o trabalhador cometeu um erro que foi usado como forma de pressão por parte de uma liderança. Ele conta que o acidente, que foi grave, virou motivo de comentários depreciativos. 

Além de usar o caso do metalúrgico para rebaixá-lo, a liderança daquele setor resgatou um vídeo do acontecimento e começou a espalhar em grupos de conversa nas redes sociais. M*, que já estava tendo dificuldades em lidar com a gravidade do acidente, precisou recorrer a atendimento psicológico para tratar a depressão. “Me senti humilhado diante do que aconteceu. Em nenhum momento foi pensado nos anos de dedicação que eu tive à empresa, sempre fui reconhecido por todos os atos de segurança e pela própria produtividade. Um erro acabou sendo determinante para a pessoa (o líder) se promover com o meu caso. Fatalmente, gera uma depressão”, comenta. 

O tratamento que o metalúrgico recebeu por parte de pessoas de dentro da fábrica foi responsável por agravar um quadro depressivo. M* não é o único trabalhador fragilizado por um ambiente de trabalho em que a pressão e o descaso imperam. E, por fim, se esta continuar sendo a realidade dentro das empresas, a previsão da Organização Mundial da Saúde (OMS), de que em 2030 depressão será a doença mais comum do mundo, deve se concretizar.

“O ambiente de trabalho pode agravar a saúde mental. A pressão psicológica que você enfrenta dentro da empresa não é somente pela cobrança de produção, mas, também sobre a preocupação pessoal de algumas lideranças em querer manter números sem se preocupar com as pessoas. Para alcançar esses números, algumas pessoas não medem esforços e não respeitam o lado humano dos funcionários”, lamenta o metalúrgico M*. 

Ajuda

“Antes de tudo, é mais do que válido dizer que os companheiros não estão sozinhos. O Sindicato está à disposição para prestar esclarecimentos e direcionar os trabalhadores e trabalhadoras que passaram por essa triste situação. Também fica aqui a nossa indignação já que neste mês, em que vários RHs pautam a necessidade da conscientização sobre a saúde mental, nós ainda temos que reportar casos contra os trabalhadores”, diz Leandro Soares, presidente do SMetal.

O Sindicato recorda que, uma vez comprovada que a causa ou agravamento de uma doença psicológica tem relação com o trabalho, a pessoa possui os mesmos direitos de quem sofre um acidente na empresa ou doença ocupacional. Se este for o seu caso, procure o Departamento Jurídico e se informe.

*A Imprensa do Sindicato dos Metalúrgicos utilizou iniciais (não correspondentes aos nomes) para não revelar a identidade dos trabalhadores ouvidos nesta reportagem.

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