Quando o preço do desenvolvimento é o envenenamento de crianças
Gerações de brasileiros estão crescendo condenadas ao flagelo decorrente da exposição a produtos químicos de uso agrícola, de grande potencial tóxico, desde a infância.
De 2007 a 2014 o Brasil registrou 25 mil casos de intoxicações por agrotóxicos. Recente pesquisa da Professora Larissa Bombardi (USP) apontou que 25% do total de vítimas que sofreram danos causados pela exposição aos pesticidas é composta por crianças e adolescentes.
Mais grave ainda é a constatação de que 20% do total de ocorrências estão concentradas na faixa de 0 a 14 anos. Em Mato Grosso, há grande concentração de casos na faixa de 0 a 4 anos.
O dado é muito preocupante pois o país convive com o grave problema da subnotificação. Segundo a Organização Mundial da saúde (OMS), para cada caso de intoxicação que chega aos registros oficiais, há outros 50 não registrados.
A exposição crônica afeta o sistema nervoso central. Segundo o Instituto Nacional do Câncer (INCA) os efeitos associados à exposição continuada e frequente aos produtos tóxicos compreendem: “além do câncer, infertilidade, impotência, abortos, malformações fetais, neurotoxicidade, desregulação hormonal e efeitos sobre o sistema imunológico” – dado que pode ajudar a explicar o fato de que, na faixa entre 10 e 14 anos, a tentativa de suicídio esteja entre as maiores causas de intoxicação por agrotóxicos.
Recentemente a imprensa repercutiu a assombrosa revelação do aumento no registro de casos de câncer, malformações de bebês e de puberdade precoce (crianças com 1 ano) na região da Chapada do Apodi, no estado do Ceará, em que há cultivo com irrigação e pulverização de veneno.
A pergunta perturbadora é: como chegamos a essa situação?
A resposta não é simples. Concorrem para o resultado uma somatória de fatores. Mantemos e incentivamos um modelo de produção que é excessivamente dependente de insumos químicos – a gravidade do problema demanda redirecionamento de pesquisas e reorientação das políticas tributárias e de financiamento no setor.
A correção das políticas tributárias e de financiamento decorre, indubitavelmente, do comando constitucional que afirma o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, essencial à sadia qualidade de vida.
Isso impõe ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo, inclusive para as gerações futuras, determinando o controle de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a saúde e o meio ambiente (arts. 196 e 225).
Esse é um dos princípios que estrutura a ordem econômica: defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado, conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação. Lembrando que a ordem econômica também tem por fim assegurar a todos existência digna (art. 170).
A desconsideração ao meio ambiente e à saúde, por meio dos benefícios fiscais concedidos aos agrotóxicos viola o princípio constitucional da seletividade tributária (arts. 153 e 155).
Nesse sentido foi a manifestação da procuradora-geral da República, Raquel Dodge ao defender a inconstitucionalidade de normas que concedem isenção fiscal a produção e comercialização de agrotóxicos, na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5553: “Os agrotóxicos, a despeito de permitirem, na maioria das situações de uso, a elevação da produção agrícola, não se afiguram essenciais para fins de seletividade tributária; mormente considerando a sua intrínseca nocividade à vida saudável e o seu elevado potencial para a eclosão de danos ambientais”.
O impacto ambiental também deveria orientar as atividades de pesquisa, de extensão e de estímulo e fomento à inovação (art. 213).
Em síntese, temos uma regulamentação muito permissiva, que admite o registro e a utilização de produtos agressivos, banidos em vários outros mercados, inclusive em países que desenvolveram as fórmulas. E temos graves limitações na fiscalização, ambiental, sanitária e do trabalho.
São dados que formam o contexto que expõe uma infinidade de brasileiros, que trabalham na agricultura ou vivem nas fronteiras agrícolas em que há intensa utilização de pesticidas, aos efeitos de produtos químicos agressivos ao ser humano e ao ambiente.
Além dos óbitos, dentro do exército de sequelados e incapacitados, sabe-se, há crianças. Muitas crianças, infelizmente, trabalham em contato com esses produtos. As fiscalizações de trabalho rural encontram, com frequência, crianças em atividades proibidas para a idade.
O Brasil reconhece como uma das Piores Formas de Trabalho Infantil (Decreto nº 6.481/2008), aquele realizado na pulverização, manuseio e aplicação de agrotóxicos, adjuvantes, e produtos afins, incluindo limpeza de equipamentos, descontaminação, disposição e retorno de recipientes vazios.
De forma didática, a Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (Decreto nº 6.481/2008), deixa claro que o contato com agrotóxicos causa riscos ocupacionais como exposição a substâncias químicas, tais como, pesticidas e fertilizantes, absorvidos por via oral, cutânea e respiratória que podem ter repercussões à saúde envolvendo intoxicações agudas e crônicas; poli-neuropatias; dermatites de contato; dermatites alérgicas; osteomalácias do adulto induzidas por drogas; cânceres; arritmias cardíacas; leucemias e episódios depressivos.
Contudo, a contaminação não abrange apenas o contato de crianças e adolescentes com o veneno no trabalho, mas também as consequências da pulverização aérea, a ingestão da água e de alimentos contaminados. E mesmo o contato com as roupas usadas pelos pais, trabalhadores rurais que lidam com agrotóxicos, e, irregularmente, levam a roupa envenenada para lavar em casa – pratica vedada pela Norma Regulamentadora nº 31 do Ministério do Trabalho (NR31).
No particular, há um conjunto de normas protetivas à criança e ao adolescente. Todas decorrem da disposição constitucional que fixa ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à saúde. São normas de difícil fiscalização.
Os dados, assustadores, comprovam que não estamos garantindo o direito à saúde das nossas crianças. O desenvolvimento do Brasil está se dando, também, ao custo do envenenamento de nossas crianças e da intoxicação dos adolescentes.
Thalma Rosa de Almeida Furlanetti e Leomar Daroncho são procuradores do Trabalho